Sandra Lucia Goulart
Pretendo abordar o caso de grupos religiosos fundamentados no consumo ritual do chá psicoativo conhecido pelos nomes de Daime, Vegetal, Hoasca, Ayahuasca1, entre outros.
Seguindo uma abordagem histórica, mostro que, numa primeira fase, esses cultos eram acusados por diferentes setores da sociedade brasileira de práticas de “macumba”, “feitiçaria” e “curandeirismo”. Argumento que, atualmente, os estigmas sofridos pelas religiões designadas geralmente de ayahuasqueiras se transformaram. O uso do chá e as práticas rituais ligadas a ele passam a ser estigmatizados na medida em que são associados ao consumo de drogas. Em ambos os períodos, entretanto, estamos diante de grupos religiosos sob os quais paira a ameaça
constante da ilegalidade.
É o uso de um chá psicoativo – que recebe, como coloquei acima, denominações
diversas, tais como ayahuasca, Daime e Vegetal – o elemento central de diferentes cultos religiosos surgidos na Amazônia brasileira a partir, principalmente, da década de 1930. Num determinado momento da história desses grupos, eles passam a ser identificados pela expressão religiões da ayahuasca ou ayahuasqueiras, sobretudo no âmbito externo desse universo religioso – na mídia, entre os estudiosos do tema, na sociedade em geral. Por isso, aqui, opto também por utilizar essa designação, em especial quando o objetivo for tocar em questões relativas ao conjunto desses grupos, como os modos pelos quais eles são percebidos e classificados por “outros”, isto é, sua imagem social – tema, aliás, destacado neste artigo. Contudo, conforme veremos, cada um desses grupos religiosos possui, igualmente, suas denominações particulares.
Cronologicamente, a primeira religião ayahuasqueira brasileira é aquela que ficou
conhecida como Santo Daime, criada por Raimundo Irineu Serra, o Mestre Irineu, no início dos anos trinta, em Rio Branco, Acre. O termo Daime, que serve de nome tanto ao culto quanto a bebida aí utilizada, segundo estes religiosos, relaciona-se às invocações feitas ao ser espiritual que habita o chá. Assim, “Dai-me” é um pedido feito por quem consome o chá ao próprio chá: “dai-me saúde, dai-me amor, dai-me luz”, etc.2 Em 1945, surge outra religião ayahuasqueira, também em Rio Branco, criada por Daniel Pereira de Mattos, o Mestre Daniel. Inicialmente, o culto do Mestre Daniel era conhecido em Rio Branco como “Capelinha de São Francisco”, nome dado a humilde construção de taipa, situada numa região rural, onde ele começou a realizar “trabalhos espirituais” usando o chá. Mais tarde, porém, os grupos que têm sua origem ligada ao culto fundado pelo Mestre Daniel vão todos ficar conhecidos e se auto-identificarem
pela designação Barquinha. Como no caso de Daime, há diferentes explicações para o termo Barquinha. Em certo sentido, ele parece estar associado a um dos ofícios exercidos pelo fundador do culto que, antes de chegar ao Acre, foi piloto fluvial. Além disso, e talvez também devido a isso, imagens e significados ligados ao mar e aos marinheiros recebem destaque nesta religião ayahuasqueira. Assim, as roupas usadas nos rituais (chamadas de “fardas”) lembram as vestimentas dos marinheiros, muitas das músicas entoadas (os hinos) falam, constantemente, de uma “barca”, de navegação e do mar. Segundo Araújo, autor do primeiro estudo acadêmico sobre este grupo religioso, Barquinha vêm de “barca”, e associa-se à missão dos seguidores de
Mestre Daniel, enquanto o mar, nesta religião, é associado ao próprio chá, que aqui também recebe o nome de Daime (Araújo, 1999, p. 75-84).
O Mestre Daniel freqüentou o culto do Santo Daime fundado pelo Mestre Irineu por
cerca de dez anos. Foi aí que ele conheceu o chá do Santo Daime. Os dois líderes religiosos eram amigos, conterrâneos, ambos nascidos no Maranhão.3 Com o passar do tempo, no entanto, as experiências com o chá conduzem o Mestre Daniel à revelação de que ele possuía uma outra “missão religiosa”, que apenas se realizaria plenamente com a criação de um novo culto da ayahuasca (Araújo, 1999; Goulart, 2004a). Este foi sendo organizado gradualmente, no início na própria residência de Daniel, no bairro de Vila Ivonete, mesmo local onde o Mestre Irineu começou a organizar seu culto. Daniel passou a residir aí por volta de 1945, quando o Mestre
Irineu e os fiéis do Santo Daime já tinham se transferido para outra região de Rio Branco, o bairro, também rural, de Custódio Freire. Foi, então, na Vila Ivonete – uma região de mata, de antigos seringais já desativados – que o Mestre Daniel ergueu sua igrejinha de palha, a “Capelinha de São Francisco”. Ao que parece, o uso do Daime foi sendo introduzido aos poucos.
Conta-se que, inicialmente, o Mestre Daniel era conhecido na região como um “rezador”, procurado para tirar “quebranto” de crianças, “panema”4 de caçadores, enfim, para ajudar a resolver alguns tipos de infortúnios de viajantes, de seringueiros etc. que passavam por aquela região de mata onde ele construiu sua capelinha. Algumas dessas pessoas se tornaram os primeiros adeptos do seu culto. “O pessoal foi dizendo que em tal parte tinha um velhinho, assim preto, que rezava muito bem [...] assim foi aprovado o serviço dele, e assim ele curou muita gente”, como conta Antonio Geraldo, já falecido, e que foi uma das principais lideranças desta religião (Figueiredo et al, 1996, p. 36). Com o tempo, o Mestre Daniel aliou o consumo do Daime às suas rezas e benzeções. Os ritos foram, também, se tornando mais complexos.
Como no caso do culto daimista, eles passaram a envolver o canto de hinos. Da mesma forma como se deu com o Mestre Irineu, Mestre Daniel recebia seus hinos num processo de revelação mística estimulado pelo consumo do Daime.5
Uma das características marcantes do culto ayahuasqueiro criado pelo Mestre Daniel é sua aproximação evidente de práticas e crenças de religiões afro-brasileiras, como a Umbanda.
Muitas entidades cultuadas em grupos da Barquinha provêm do panteão umbandista, como pretos-velhos, caboclos, encantos do mar, sereias, príncipes, e orixás como Oxum, Iemanjá, Xangô, que pertencem tanto a alguns tipos de Umbanda quanto ao Candomblé. Também como em religiões afro-brasileiras, na Barquinha estes seres expressam sua presença através de uma manifestação mediúnica, que pode se dar inclusive por meio de um tipo de transe de possessão.
Em alguns rituais, ocorre uma dança (chamada de bailado6 ou brincadeira) muito similar à “gira” de cultos afro-brasileiros.
Esta adoção explícita de práticas de religiões afro-brasileiras, na Barquinha, é uma
diferença significativa entre este culto ayahuasqueiro e o Santo Daime do Mestre Irineu. Embora alguns dos hinos que estruturam a dinâmica dos rituais do Santo Daime citem seres que são cultuados em religiões afro-brasileiras, não podemos dizer que existe propriamente um culto sistemático para esse tipo de entidade na religião fundada pelo Mestre Irineu. Assim, não se organizou um conjunto de regras ou preceitos que definam suas relações com os fiéis; também o calendário ritual daimista não abrange, como no caso da Barquinha, várias datas que celebram divindades afro-brasileiras. Na verdade, mesmo as entidades afro-brasileiras mencionadas nos hinos do fundador do Santo Daime são em pouco número, principalmente se comparadas com as menções freqüentes a divindades cristãs (como Jesus e a Virgem Mãe).
Entretanto, talvez umas das maiores distinções entre o culto fundado pelo Mestre Irineu e os cultos afro-brasileiros seja o tipo de êxtase desenvolvido no primeiro, que se opõe bastante aos transes extáticos que caracterizam religiões como a Umbanda ou o Candomblé e cultos influenciados por elas, como a Barquinha. Nos rituais da religião criada pelo Mestre Irineu o tipo de transe7 que prevalece não envolve a possessão, pelos fiéis, de seres espirituais. A dança –“bailado”– que marca a maioria dos rituais daimistas está muito distante das “giras” de Umbanda, com seu rodopiar, que apesar de padronizado, dá margem para bastante liberdade corporal. Ao contrário, o bailado daimista implica na fixação dos participantes em determinados lugares e posições do início ao fim, permitindo apenas pequenos movimentos, isto é, dois passos para a direita e dois para a esquerda, sem que se saia do lugar. Recomenda-se que o fiel se concentre no seu lugar, e não invada a posição dos outros participantes que também bailam ao seu lado.8 A concentração nos movimentos e a disciplina corporal se associam, na ótica destes religiosos, a uma concentração e disciplina do espírito e da mente. Com freqüência, enfatiza-se a idéia de que a atenção para com o bailado, a disciplina dos movimentos dos participantes é importante para que a “matéria” não seja invadida por “forças inferiores” ou para que o “espírito” do fiel não se perca. É verdade que alguns dos novos grupos que se autodefinem como daimistas, surgidos após o falecimento do Mestre Irineu, também se aproximam do universo religioso afro-brasileiro. É o caso do Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra (CEFLURIS ), fundado em 1975, em Rio Branco, por Sebastião Mota de Melo, o padrinho Sebastião. Porém, primeiro, é importante salientar que esta característica do CEFLURIS é um dos elementos que o tornam um dos grupos mais peculiares do que se convencionou chamar de linha do Santo Daime e, por isso, faz com que ele seja alvo freqüente de críticas e acusações da parte de outros grupos que igualmente se identificam com a tradição religiosa fundada pelo Mestre Irineu. Em segundo lugar, se o CEFLURIS adota crenças de religiões afro-brasileiras em seus rituais, ele não o faz do mesmo modo e pelos mesmos caminhos que o culto da Barquinha.
Em 1961, surge a União do Vegetal ou UDV, como também é conhecida,9 que é, em
termos históricos, a terceira religião ayahuasqueira do Brasil. Ela foi fundada por José Gabriel da Costa, o Mestre Gabriel. De certo modo, pode-se dizer que a UDV teve um desenvolvimento mais autônomo, isto é, que não envolveu contatos, no seu momento de formação, com as duas outras religiões ayahuasqueiras. Enquanto Santo Daime e Barquinha surgiram, ambos, em Rio Branco, e no mesmo bairro, a União do Vegetal surgiu em Porto Velho, Rondônia. Conforme vimos, também, o fundador da Barquinha se iniciou no uso do Daime com o Mestre Irineu. Já o Mestre Gabriel, fundador da UDV, conheceu o chá por outros caminhos. Aliás, apesar de existirem algumas poucas afirmações sobre o fundador da UDV ter conhecido o Mestre Irineu, a maior parte dos dados e registros que colhi em minhas pesquisas não é suficiente para provar que isso de fato tenha ocorrido. Além disso, os fundadores do Santo Daime e Barquinha chegaram ao Acre ainda no princípio do século XX, e o período de formação de seus respectivos cultos é muito próximo (década de trinta e quarenta). Por sua vez, o fundador da UDV, que era natural do estado da Bahia, só chega a Rondônia por volta de 1943, e começa a organizar a nova religião ayahuasqueira no princípio dos anos sessenta.
As diferenças entre a União do Vegetal e o Santo Daime e a Barquinha não se dão apenas nos processos históricos de sua formação. Há, igualmente, várias distinções marcantes entre as formas rituais, os preceitos doutrinários, ou os elementos míticos expressos no culto da UDV e os dos cultos do Santo Daime e da Barquinha. Em primeiro lugar, vale notar que se nas duas primeiras religiões ayahuasqueiras o chá recebe, igualmente, o nome de Daime, na UDV ele é designado de Vegetal. Em termos de formas rituais assumidas nos respectivos cultos, chama a atenção o fato de que na Barquinha e no Santo Daime a dança (o bailado) é um aspecto extremamente destacado, de fundamental importância para a expressão dos princípios doutrinários e da mitologia. Já na UDV, ela é totalmente excluída das cerimônias rituais. Nestas,
depois do Vegetal ser servido para todos os participantes, os presentes sentam-se e assim devem permanecer até o final da “sessão” (que dura cerca de quatro horas) – termo utilizado para denominar os rituais da UDV. No Santo Daime, a palavra falada, durante a maioria dos rituais, é evitada. Já na Barquinha, são mais freqüentes discursos ou palestras feitos pelos dirigentes ou, então, pelas entidades (os “guias”) que incorporam nos médiuns. Porém, é na União do Vegetal que a palavra falada possui, de fato, um papel relevante na organização da estrutura e da dinâmica ritual. Assim, no decorrer das sessões de Vegetal, todos os participantes podem e devem realizar questões para os Mestres que dirigem a cerimônia. Esse conjunto de perguntas e respostas, ao lado da leitura de uma série de documentos oficiais da UDV (estatutos, boletins, resoluções da direção geral do culto, etc.), e também do entoar das “chamadas” (espécies de canções moduladas apenas pela voz de um único participante que canta), formam o conteúdo principal dos rituais da UDV.
Em minha tese de doutorado (Goulart, 2004a) argumentei que estas distinções entre as três principais religiões ayahuasqueiras brasileiras expressavam desenvolvimentos particulares de um mesmo conjunto de crenças e práticas, isto é, de uma tradição que é comum a estas diferentes religiões, na qual todas elas bebem. Assim, nos três cultos verificamos a presença de temas típicos do universo cultural amazônico, diretamente ligados ou não ao contexto cabocloindígena de uso da ayahuasca. Outro denominador comum às religiões do Santo Daime, Barquinha e UDV são os elementos do catolicismo popular, principalmente aqueles relacionados a uma cultura nordestina e que entraram em confluência com tradições amazônicas - salientando-se, aqui, o fato de que os fundadores das três religiões eram nordestinos que migraram para a Amazônia. Também um conjunto de características comuns às três religiões, é o que se refere aos cultos afro-brasileiros.
Contudo, como afirmei, esta tradição comum tem desdobramentos diferentes no Santo Daime, na Barquinha e na UDV. Os elementos do catolicismo popular, por exemplo, podem aparecer bem destacados em uma religião ayahuasqueira, enquanto em outras eles são atenuados por uma maior evidência de crenças da pajelança amazônica ou de cultos afrobrasileiros.
É possível, ainda, que eles se manifestem de forma clara nos ritos principais de uma dessas religiões, e que em outras surjam de forma sutil na mitologia. Do mesmo modo,
os temas amazônicos assumem formas variadas nos respectivos cultos ayahuasqueiros, podendo se expressar através de regras rituais, temas míticos, princípios doutrinários, entre outras coisas. Enfim, crenças e práticas diversas dessa tradição comum – do catolicismo popular, do universo amazônico e de cultos afro-brasileiros – podem ser temas principais em algumas destas religiões e, em outras, podem constituir os seus limites, isto é, os marcos de suas fronteiras, que definem o que elas não são ou não desejam ser.
Em todas essas religiões, o falecimento de seus fundadores estimula um processo de rupturas e formação de novos grupos. Assim, após a morte do Mestre Irineu, em 1971, tem início uma disputa por sua sucessão, que leva ao aparecimento de segmentações no grupo originalmente criado por ele. A maior delas, em termos de números de adeptos envolvidos e, também, a mais expressiva, no que se refere tanto às polêmicas envolvidas no conflito quanto às suas conseqüências, foi aquela representada pelo grupo daimista do CEFLURIS, do padrinho Sebastião. Entretanto, ocorreram outras, surgindo vários grupos, em Rio Branco, que se identificavam com a tradição do Santo Daime inaugurada pelo Mestre Irineu. O fundador da Barquinha morreu em 1958 e, aos poucos, começaram a surgir, igualmente, diferentes grupos que se colocam como seguidores do culto criado pelo Mestre Daniel. O Mestre Gabriel, fundador da UDV, faleceu no mesmo ano que o Mestre Irineu, em 1971. Há, na UDV, uma organização hierárquica rígida que parece ter o efeito de controlar, mais do que nos grupos do Santo Daime e da Barquinha, esse processo de fragmentação. Porém, ele não deixa de ocorrer. Deste modo, na UDV também presenciamos a criação constante de novos grupos que disputam entre si a posição de legítimos herdeiros da religião fundada pelo Mestre Gabriel.
Portanto, parece ocorrer, neste campo religioso, um movimento de expansão impulsionado por um processo de cisões freqüente. Contudo, dentre esses grupos, há alguns que são mais expansionistas e, outros, que se caracterizam por uma espécie de regionalismo. O CEFLURIS e a União do Vegetal são grupos expansionistas, com a criação constante de centros e núcleos em várias partes do Brasil e do exterior. Eles são também os cultos ayahuasqueiros que possuem o maior número de fiéis.10 Já a Barquinha e outros grupos daimistas surgidos após o falecimento do Mestre Irineu11 não contam com um processo de expansão significativo. Além de possuírem poucos centros ou igrejas fora da região amazônica, não expressam um projeto ou desejo de difusão. Ao contrário, em geral, seus líderes e adeptos se posicionam contra a expansão manifestada por outros grupos ayahuasqueiros. Por fim, se UDV e CEFLURIS são ambos expansionistas, por outro lado, conduzem seu processo de crescimento de modo diverso.