2 de ago. de 2011

Visitando a Noosfera


O conceito de noosfera foi inicialmente proposto no ano de 1885 por Vladimir Ivanovich Vernadsky, um mineralogista e geoquímico russo-ucraniano. Segundo Edgard Morin (1988), a palavra noosfera é de origem grega e representa “círculo psíquico”; do grego noos = mente (alma, espírito, pensamento, consciência) e sphera (corpo limitado por uma superfície redonda). Ela representa justamente a camada do pensamento, idéias e crenças humanas, construída a partir dos milênios da existência do Homo sapiens e que se estabeleceu em conjunto com a geosfera e a biosfera.

Na década de 1920, o filósofo jesuíta e paleontólogo francês Pierre Theilard de Chardin reformulou esse conceito, ampliando alguns detalhes dessa perspectiva. Segundo ele, além da atmosfera, geosfera e biosfera, existe também a noosfera, ou seja, a morada dos deuses, mitos e idéias, formada a partir de produtos culturais, pelo espírito, linguagens, teorias, doutrinas e conhecimentos elaborados pela raça humana (THEILARD DE CHARDIN, 1955).

Diante dessa perspectiva podemos considerar que as culturas estão nos espíritos, assim como os espíritos estão nas culturas. “As sociedades só existem e as culturas só se formam, conservam, transmitem e desenvolvem através das interações cerebraisespirituais entre os indivíduos” (MORIN, 1988, p. 23).

“Alimentamos” a noosfera quando pensamos e nos comunicamos. Mas não podemos esquecer que a noosfera também “nos alimenta”, a partir dos mitos, idéias e pensamentos promovidos pelos diversos sistemas simbólicos e culturais. Esses elementos, na verdade, podem ser considerados extensões do Homo sapiens, que retroagem conosco, porém muitas vezes não são percebidos como tais, pois o homem atual encontra-se fragmentado e alheio à sua situação no mundo e no cosmo. Apesar da aparente distinção feita entre o material e o espiritual, as duas porções são, ao mesmo tempo, co-produtoras recíprocas uma da outra. Não podem ser reduzidas uma a outra por serem distintas e não podem ser separadas por serem co-produtoras, estabelecendo-se uma relação complexa e criativa (MORIN, 1998, pp. 145-146).

Alguns autores, entre eles, Edgard Morin (1998) e Karl Popper (1977), referem-se à noosfera como o terceiro mundo. As coisas (mitos, espíritos e símbolos) que habitam essa esfera do pensamento, têm vida e vontade própria. Elas ajudam a construir os humanos que as constroem, pois são dotadas por um magnífico dinamismo coprodutor.

É possível aceitar a realidade (caso possa chamá-la assim) a

autonomia do terceiro mundo e, ao mesmo tempo, admitir que o

terceiro mundo nasce como um produto da atividade humana

(POPPER apud MORIN, 1998, p. 159).

O homem completo, consciente do seu devir, age e se deixa interagir por essas estruturas do pensamento que emergem naturalmente ao longo de sua vida. Um dos exemplos desse homem, não fragmentado na contemporaneidade, seria o oaskeiro, que mesmo vivendo o momento atual das fragmentações, consegue unir as partes dispersas no mundo, a partir do contato direto com essa dinâmica camada do pensamento. Seus mitos e ritos mantêm, ampliam e “alimentam” o astral (noosfera) assim como o astral conduz as suas vidas cotidianas fazendo-os repensar atos, gestos e antigos conceitos. Os dois níveis da existência encontram-se interligados e reorganizados numa lógica para além das bases reducionistas.

Essa esfera é como um meio, no sentido mediador do termo,

interposto entre nós e o mundo exterior para fazer-nos comunicar com

este. É o meio condutor do conhecimento humano (...) As culturas

humanas produziram símbolos, idéias, mitos, que se tornaram

indispensáveis às nossas vidas sociais. Os símbolos, idéias e mitos,

criaram um universo onde os nossos espíritos habitam (MORIN, 1998,

p. 146).

Mas como essas extensões humanas, que ficam nos âmbitos restritos da noosfera, podem extrapolar tais domínios astrais e atuar no cotidiano do oaskeiro, quando o mesmo se encontra longe do Salão do Vegetal? É plausível o argumento de que tal fenômeno pode ser influenciado pela ação direta de alguns símbolos emergentes durante a experiência religiosa. No caso dos sistemas udevistas tais símbolos estão presentes nas chamadas, histórias e situações de pêia, além das mensagens e visões do mundo espiritual, presenciadas durante os rituais.

A atividade inconsciente do homem moderno não cessa de lhe

apresentar inúmeros símbolos, e cada um tem uma certa mensagem a

transmitir, uma certa missão a desempenhar, tendo em vista assegurar

o equilíbrio da psique ou restabelecê-lo (...) O símbolo não somente

torna o Mundo “aberto”, mas também ajuda o homem religioso a

alcançar o universal. Pois é graças aos símbolos que o homem sai de

sua situação particular e se “abre” para o geral e o universal. Os

símbolos despertam a experiência individual e transmudam-na em ato

espiritual, em compreensão metafísica do Mundo (ELIADE, 1992, pp.

111-112).

O antropólogo lingüista Edward Sapir (1934) analisa os símbolos criados pelos seres humanos, acoplando-os em duas grandes categorias; símbolos referenciais e símbolos de condensação. A primeira categoria é composta por aqueles símbolos que já possuem um significado comum à sociedade, de forma que sua atuação direciona a funcionalidade da mesma. Os símbolos de condensação estariam ligados à emoção e aos demais aspectos desconhecidos do inconsciente. Assim sendo, esses símbolos manifestam-se sob a forma de metáforas, durante a dinâmica ritual.

Apesar desse dualismo entre as categorias propostas por Sapir, nada impede que um símbolo seja ao mesmo tempo referencial e ou condensado, pois um mesmo símbolo que conduz o funcionamento da sociedade (referencial) pode despertar sentimentos inconscientes nos participantes de um ritual transformando-se, dessa forma, num elemento simbólico de condensação. O oposto também pode acontecer, quando um símbolo condensado torna-se referencial*. Para o nosso caso específico, interessa o momento em que Sapir afirma que:

Enquanto símbolos referenciais crescem com uma elaboração formal

consciente, os símbolos condensados alcançam raízes profundas do

inconsciente e suas qualidades emocionais se difundem em

comportamentos distantes do curso aparente das significações (SAPIR

apud TURNER, 1974, p. 87).

É quando o oaskeiro, por algum motivo, acessa esses conteúdos metafóricos e emocionais que imediatamente os remete ao seu lugar de poder. Mesmo longe do Salão do Vegetal, ele não se esquece da sua caminhada espiritual, pois tais elementos simbólicos afloram em seu inconsciente, a necessidade de mudança para o alcance da conduta exigida. Isso faz com que atos, gestos e palavras sejam repensados e reformulados cotidianamente. É o que os oaskeiros denominam de “eterna ligação” com o trabalho espiritual. Quando, por exemplo, as chamadas vêm “à cabeça” durante a semana num momento de agonia ou quando sente os enjôos e náuseas da pêia ao fazer algo fora dos ensinamentos, no seu dia-a-dia, o “aluno” relembra que tem um caminho de luz a seguir.

O que desencadeia a ação desses símbolos de condensação permanece um mistério. A emergência de tais conteúdos promove uma atmosfera de reflexão estimulada por símbolos que atuam para além do seu lugar de origem, longe do Salão do Vegetal. A vida dos oaskeiros se renova durante os estados da burracheira que os fazem refletir sobre sua condição de ser humano no mundo. Eles voltam do plano astral trazendo consigo os ensinamentos e a responsabilidade dessas informações obtidas durante os encantos. O “aluno” é tomado por uma forte necessidade de mudança interior porque sabe que para reformular o mundo em que vive, precisa mudar a si mesmo.

Nota:

*Um exemplo possível dessa dinâmica pode surgir se fizermos uma análise superficial da simbologia de um simples copo. Seguindo essa lógica, um copo seria um símbolo referencial, pois o mesmo nos remete a uma função social universal que é a de beber líquidos. Porém, durante o ritual, esse elemento simbólico mostra-se condensado, pois dentro do copo está um líquido sagrado que está prestes a ser comungado e isso aflora sentimentos inconscientes. Da mesma forma esses sentimentos podem emergir, quando o copo for visto fora da atmosfera ritual. Lembrando que tal comparação serve apenas como exemplo ilustrativo para uma maior compreensão da dinâmica simbólica de Edward Sapir.

Texto da tese de mestrado “OS TRAJETOS DO ÊXTASE DISSIDENTE NO FLUXO COGNITIVO ENTRE HOMENS, FOLHAS, ENCANTOS E CIPÓS: UMA ETNOGRAFIA AYAHUASQUEIRA NORDESTINA” de WAGNER LINS LIRA.



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